quarta-feira, 4 de maio de 2016

Para que serve um escritor? Por José Eduardo Agualusa


Para que serve um escritor?

Questão colocada pelo Escritor José Eduardo Agualusa, em alusão da tomade de posse do novo corpo gerente da UEA.

Sou, desde há longos anos, membro da União de Escritores Angolanos (UEA). No passado dia 16 decorreram eleições para os corpos gerentes. Não irei comentar aqui a polémica decorrente destas eleições porque, estando longe, receio não possuir elementos para um julgamento justo.
Interessa-me mais reflectir sobre a utilidade e a importância desta instituição nos dias de hoje. Se outro mérito não teve, o debate que rodeou o processo eleitoral veio confirmar a (ainda) singular relevância política da instituição. Fundada a 10 de Dezembro de 1975, poucas semanas após a independência, num período de terrível turbulência, extremada intolerância e pensamento único, a UEA conseguiu transformar-se num pequeno território de debate. Em determinada época terá sido mesmo um dos raros espaços no país onde o debate, mais ou menos livre, era possível.
A 1 de Fevereiro de 1952, o poeta António Jacinto escreveu uma carta a Mário Pinto de Andrade na qual afirmava a fé no papel da poesia: “Eu creio que é pela poesia que tudo vai começar.” Com aquele “tudo”, António Jacinto referia-se ao movimento nacionalista. Era uma afirmação grandiosa e arriscada, que, a esta distância, só não nos parece terrivelmente ingénua, porque se veio a revelar profética. Não por acaso, muitos dos membros fundadores da UEA viriam a ocupar cargos importantes nos primeiros governos da Angola independente.
De então para cá a poesia (a literatura) perdeu importância. Fomos descendo de Jacinto até Kangamba. A boa notícia é que já não dá para descer mais. A outra boa notícia é que a UEA tem mais a ganhar do que a perder com o fim da ligação ao poder político. A UEA tem agora a oportunidade de se transformar numa instituição independente, vocacionada não só para a defesa dos interesses dos escritores como, sobretudo, para a defesa da própria literatura. A defesa da literatura passa pela defesa, sem hesitações, da liberdade de pensamento e de expressão. Sem liberdade de pensamento não existe literatura. Talvez dactilografia, mas não literatura.
Antes de nos perguntarmos para que serve uma instituição como a UEA, convém perguntar: para que serve um escritor?
Acredito que um escritor tem de ser antes de tudo um homem livre. Um escritor resgata memórias; um escritor pode ajudar a fixar identidades; mas, sobretudo, um escritor ocupa-se na criação de novos mundos capazes de questionarem o actual. Escritores são por natureza questionadores. Um bom livro, ou é subversivo, ou não será assim tão bom.
Por isso, insisto, a UEA deveria ser, antes de mais, um espaço de debate livre e de livre pensamento. Uma oficina de criação de liberdade. A poesia tem de voltar a ser lugar de partida para as grandes transformações sociais que o país tanto necessita. Para que possamos glosar António Jacinto: “Creio que é pela poesia que tudo vai recomeçar.”
FONTE: Rede Angola,22.04.2016 • 00h00 • atualizado às 14h18

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